Escrevendo em Primeira Pessoa
Quase todos os livros de ficção são escritos em primeira ou terceira pessoa. Porém, quando chega a hora de escolher um para a sua história, como decidir qual ponto de vista usar? Quais são as diferenças entre eles? Como eles afetam a sua história?
Escolher um ponto de vista é uma decisão importante. Apesar de a princípio parecerem similares, esses dois pontos de vista podem alterar drasticamente o estilo e tom da sua história. Sendo assim, pense bem na hora de escolher qual deles faz mais sentido de acordo com a história que você deseja contar.
Se por um lado a terceira pessoa cria certa distância narrativa entre múltiplos personagens, a primeira pessoa, do outro, gera uma enorme aproximação entre o leitor e o personagem que narra a história.
A Diferença entre Primeira e Terceira Pessoa
Um narrador personagem se tornará as lentes através das quais o leitor assistirá aos acontecimentos da história, permitindo que eles explorem aspectos mais profundos da personalidade desse personagem além daquilo que é aparente exteriormente.
Isso gera uma conexão emocional imediata entre o leitor e o personagem principal, mas também pode ser bem limitante.
Como autor, você terá que ser criativo para compartilhar informações que estão além daquilo que o personagem está pensando ou sentindo no momento.
Observe as duas passagens a seguir, que são escritas de dois pontos de vista diferentes:
“Me pediram para aguardar. A consulta devia ter começado há meia hora, e ainda estou aqui, sentada na sala de espera, folheando a Vogue, pensando em me levantar e ir embora. Sei que consultas médicas passam do horário, mas as de psicólogos? Os filmes sempre me fizeram acreditar que eles enxotam você do consultório assim que seus 50 minutos se encerram. Acho que Hollywood não está se referindo ao tipo de psicólogo que você encontra no sistema de saúde pública. Estou prestes a ir até a secretária e lhe dizer que já esperei demais, que estou indo embora, quando a porta do consultório se abre e um homem muito alto e magro aparece, a expressão constrangida, e me estende a mão.” — Paula Hawkins, A garota no trem
“A Sra. Richardson estava de pé no gramado, fechando o robe azul-claro. Embora já passasse do meio-dia, ela ainda estava dormindo quando os alarmes de fumaça dispararam. Tinha ido se deitar tarde, e dormira demais de propósito, dizendo a si mesma que merecia isso depois de um dia difícil. Na noite anterior, observara de uma das janelas do segundo andar a hora em que um carro finalmente estacionou diante da casa. A entrada para carros era comprida e circular, um arco profundo em forma de ferradura que ia da rua até a porta da frente e voltava, de um jeito que a rua ficava a cerca de cem metros de distância, longe demais para que ela a enxergasse direito. Além disso, em maio o dia já estava quase escuro às oito da noite. Mas ela reconheceu o pequeno Volkswagen marrom-claro da inquilina, Mia, com os faróis acesos. A porta do carona se abriu e uma pessoa magra saiu, deixando a porta entreaberta: era a filha adolescente de Mia, Pearl.” — Celeste Ng, Pequenos incêndios por toda parte
Você provavelmente deve ter percebido de imediato a enorme diferença de tom entre esses dois trechos. Apesar de ambos descreverem uma mulher em algum tipo de atividade solitária, o primeiro trecho — escrito em primeira pessoa — é muito mais próximo e íntimo que o segundo.
Enquanto o segundo trecho te permite ter uma visão mais ampla da cena, o primeiro te apresenta os pensamentos e sentimentos interiores da personagem principal.
Você sente a frustração dela com a espera, sua visão e opinião sobre psicólogos e a descrição dos acontecimentos e personagens de acordo com a percepção dela.
No geral, o segundo trecho te dá uma visão mais compreensiva da cena, já o segundo te dá uma visão maior da atitude e percepção da personagem principal.
Tipos de Primeira Pessoa
1. Pela perspectiva do personagem principal
A forma mais comum de primeira pessoa é aquela escrita segundo a perspectiva do protagonista. Isso é quando o personagem principal conta a história diretamente para o leitor.
Esse ponto de vista permite que o leitor compreenda a história por meio dos pensamentos e sentimentos do personagem principal. Isso cria uma intensa conexão emocional entre o personagem e o leitor, porque eles são influenciados pela perspectiva desse personagem.
Lembre-se: todos os narradores são de alguma forma tendenciosos. Ou seja, quando contar uma história usando essa perspectiva, é bem possível que seu personagem interprete certas coisas de uma forma diferente da qual elas realmente são.
Você pode mostrar isso aos leitores por diferenciar a voz de um personagem e suas ações. Quando faz isso, você cria um narrador não confiável, o que significa que seu leitor não pode acreditar objetivamente em tudo que o narrador está lhe contando.
Aqui está um exemplo de O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger:
“Apesar disso, às vezes me comporto como se tivesse doze anos. É o que todo mundo diz, principalmente meu pai. Até certo ponto é verdade, mas não é totalmente verdade. As pessoas estão sempre pensando que alguma coisa é totalmente verdadeira. Eu nem ligo, mas tem horas que fico chateado quando alguém vem dizer para me comportar como um rapaz da minha idade. Outras vezes, me comporto como se fosse bem mais velho — no duro — mas aí ninguém repara. Ninguém nunca repara em coisa nenhuma.”
2. Pela perspectiva de um narrador periférico
Se você quer que o leitor aprenda sobre o seu personagem por meio dos olhos de outra pessoa, você pode usar um narrador periférico.
Seu narrador periférico transmite a história para o leitor, mas ele próprio não é o foco. É quase como uma terceira pessoa, mas seu narrador ainda é um personagem também e não um observador completamente objetivo, portanto, ele está contando a história através do seu ponto de vista e os leitores estão limitados à percepção subjetiva dele.
Esse tipo de primeira pessoa é excelente quando você quer manter certo ar de mistério cercando seu personagem principal, mas ainda quer uma narração dos acontecimentos em primeira pessoa através de uma voz narrativa mais marcante.
Aqui está um exemplo de O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald:
“Somente Gatsby, o homem que empresta seu nome para esse livro, estava isento dessa minha reação, justamente Gatsby, que representava tudo aquilo que eu desprezava. Se a personalidade é uma série ininterrupta de atitudes bem-sucedidas, então existia alguma coisa de grande beleza nele, uma espécie de sensibilidade aguda para as possibilidades de prazer que a vida oferece, tal como se ele estivesse ligado a uma daquelas máquinas complexas que registram terremotos a quinze mil quilômetros de distância.”
3. No passado
Uma vez decidida através da perspectiva de quem você irá contar a sua história, você deve decidir se quer escrevê-la no passado ou no presente.
Se escolher escrever no passado, significa que você estará contando ao leitor uma história que já aconteceu. Isso permitirá que o narrador ou personagem principal reflita a respeito do seu eu do passado e prefigure o que está para acontecer.
Escrever no passado é de longe a escolha mais comum entre os escritores de ficção e, portanto, é a mais confortável para os leitores. Sendo assim, a menos que você tenha algum grande motivo para escrever no presente, é melhor escolher o tempo passado.
Aqui está um exemplo de primeira pessoa no tempo passado de A menina que roubava livros, de Markus Zusak:
“A dupla dinâmica de guardas do trem voltou à mãe, à menina e ao corpinho masculino. Lembro-me claramente de que estava respirando alto nesse dia. Fiquei surpresa com o fato de os guardas não me notarem ao passarem por mim. Agora o mundo estava afundando, sob o peso de toda aquela neve.”
4. No presente
Escrever uma história no presente — como se os acontecimentos estivessem ocorrendo à medida que são lidos — gera uma sensação de imediatismo para o leitor.
Esse tipo de narração é comum em histórias que são contadas através de trechos de um diário, fitas de vídeo ou em algum outro formato que normalmente seria escrito no presente.
O presente também é comum em histórias que possuem mais ação do que introspecção. Isso porque os pensamentos do narrador não poderão ser influenciados pelo tempo e por reflexões, assim a história irá parecer seguir mais o fluxo direto de pensamentos do narrador.
Aqui está um exemplo de Perdido em Marte, de Andy Weir, que é narrado através de uma série de trechos de um diário:
“Nem sei quem vai ler isto. Acho que alguém vai acabar encontrando. Talvez daqui a cem anos. Que fique registrado: não morri em Sol 6. O restante da tripulação certamente achou que eu tivesse morrido, e não posso culpá-los. Talvez decretem um dia de luto nacional em minha homenagem e minha página na Wikipédia vá dizer: ‘Mark Watney foi o único ser humano que morreu em Marte.’”
Por que Escolher a Primeira Pessoa?
1. Conexão emocional
No geral, a principal vantagem de escrever em primeira pessoa é a conexão emocional que você pode criar entre o seu personagem principal e os leitores.
Quando podem ver dentro da própria mente dos personagens, os leitores têm mais facilidade para se sentirem imersos na história e como se fossem parte dela ao invés de simples observadores de fora.
Essa conexão emocional permite que você conte uma história movida mais pelo próprio personagem, o que, por assim dizer, é uma história que é influenciada mais pelas experiências dele em si do que pelos acontecimentos externos.
2. Narradores não confiáveis
Como mencionado antes, um narrador não confiável é aquele em que o leitor não pode acreditar objetivamente em tudo o que ele diz.
Considerando que todas as pessoas são um pouco tendenciosas, todo narrador em primeira pessoa não é, de certo modo, confiável. A narração por meio de um personagem sempre irá tentar guiar a interpretação do leitor a respeito dos acontecimentos. No entanto, cabe a você decidir o nível de importância que isso terá na sua história.
Narradores não confiáveis trazem uma nova dinâmica para a história, porque apesar de se sentirem bem conectados com esse personagem, os leitores ainda terão dúvidas daquilo em que podem ou não acreditar.
3. Perspectiva única e interessante
Se você escolher escrever uma história em primeira pessoa, seu personagem precisa ter uma voz e ponto de vista cativantes.
Isso torna a história muito mais interessante — porque o leitor irá experimentar uma história contada por alguém que leva uma vida muito diferente da sua própria.
Quer o seu personagem seja um astronauta, alguém que convive com uma doença, uma pessoa com uma severa doença mental ou alguém vivendo em uma era diferente… todas essas são perspectivas únicas que tornarão a história muito mais interessante para um leitor.
Limitações de Escrever em Primeira Pessoa
1. Voz de personagem forte e consistente
Se escolher escrever em primeira pessoa, você terá que enfrentar o desafio de implementar a voz de um personagem durante toda a história ao invés de usar sua própria voz de autor.
Isso exige bastante consideração, porque a voz desse personagem não apenas precisa ser interessante, como também tem que se manter consistente.
A idade, profissão, gênero, classe, era, etnia e educação do seu personagem devem todos ser levados em conta nesse ponto.
Apesar de ser um ótimo exercício para expandir suas habilidades de escrita, isso não é nada fácil. Você precisa conhecer o seu personagem por dentro e por fora para ser capaz de escrever nas palavras dele ou dela — e não nas suas.
2. Visão de mundo e perspectivas limitadas
Diferente da terceira pessoa, a primeira pessoa não permite mediações do autor.
O leitor só pode saber o que o personagem narrador vê, ouve e sabe, então é bem mais difícil inserir comentários, descrições, temas e outros aspectos de uma história.
Você também precisa tomar o cuidado de limitar a quantidade de personagens narradores. Afinal, muitas mudanças de perspectiva só irão confundir o leitor.
Isso para não falar que torna a tarefa de criar várias vozes únicas muito mais difícil para você como autor.
Se você descobrir que precisa de mais de algumas perspectivas para contar a sua história, considere usar a terceira pessoa. Será muito mais fácil alternar entre os personagens sem os leitores esquecerem quem é quem.
3. Mais difícil de mostrar ao invés de dizer
Se você já leu algum artigo sobre dicas de escrita, provavelmente já ouviu alguém dizer “mostre, não diga”. Inclusive temos um artigo no blog sobre, basta clicar aqui para ler. Esse conselho ressalta a importância de mostrar ao leitor o que está acontecendo ao invés de simplesmente dizer a eles, o que torna a história muito mais interessante e envolvente.
Como a escrita em primeira pessoa é tão focada na narrativa, é muito mais fácil cair no erro de contar ao invés de mostrar.
É bem provável que você tenha dificuldade para escrever frases que não comecem com “eu”. Sendo assim, vai exigir tempo e esforço para ser capaz de produzir uma boa variação de sentenças.
Por exemplo, ao invés de dizer “eu estava com fome”, você poderia dizer “quando senti o cheiro da comida que ele colocou na minha frente, meu estômago roncou”.
A primeira pessoa também torna muito mais difícil escrever descrições que não parecem forçadas.
Você não vai querer depender do velho clichê de fazer seu personagem principal olhar para o espelho e descrever a própria aparência. Além de não ser realista, isso acaba com a imersão dos leitores.
Ao invés disso, aproveite o máximo possível dos diálogos. Eles serão seus maiores aliados para revelar descrições e informações que não são incorporadas com tanta facilidade assim na narração de um personagem.
Por exemplo, ao invés de dizer “eu olhei no espelho e vi que meu cabelo agora estava cortado logo abaixo do meu queixo”, tente algo como “ele olhou para mim por menos de um segundo antes de dizer: ‘Você cortou o cabelo?’”
Escolhendo entre Primeira e Terceira Pessoa
Quando o assunto é ponto de vista, nenhum dos dois é mais popular ou comercializável do que o outro. Ambos são amados na mesma medida pelos leitores, sendo assim, escolha aquele que mais se adequa às demandas da sua história.
Se mesmo assim você ainda não tem certeza de qual escolher, pense um pouco nas seguintes perguntas e veja se a resposta não fica mais clara:
- O seu personagem principal ou narrador possui uma visão de mundo ou perspectiva única?
- É importante que o leitor desenvolva uma conexão emocional imediata com o protagonista?
- A visão do seu personagem determina o rumo da história ao invés dos acontecimentos externos? Os pensamentos internos dele são essenciais para a história?
- Sua história pode se beneficiar de um narrador não confiável?
- Você é capaz de contar a sua história sem comentários externos ou uma perspectiva objetiva mediadora?
Se você respondeu sim para a maioria ou para todas essas perguntas, então você provavelmente deveria escrever o seu livro em primeira pessoa.
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